O Código de Processo Criminal de Primeira Instância foi promulgado pela lei de 29 de novembro de 1832, que tratou da organização judiciária e da parte processual complementar ao Código Criminal de 1830, alterando inteiramente as formas do procedimento penal então vigentes, herdadas da codificação portuguesa.
A elaboração de um código específico para o processo criminal iniciou-se no Primeiro Reinado durante a primeira legislatura do parlamento brasileiro (1826-1829), composto por Senado e Câmara dos Deputados, a partir do projeto apresentado pelo ministro da Justiça Lúcio Soares Teixeira de Gouveia, em maio de 1829. A comissão que deu nova redação a esse projeto, formada por José Antônio da Silva Maia, Manoel Alves Branco e Antônio José da Veiga, só foi eleita em julho de 1831. O projeto do código de processo criminal para intervir nos juízos de primeira instância foi assinado pelo seu relator, o liberal Manoel Alves Branco, deputado pela Bahia, sendo aprovado na segunda legislatura (1830-1833).
O Código de Processo Criminal foi promulgado na conturbada década de 1830, quando o governo imperial, para enfrentar a grave crise política após a abdicação do imperador d. Pedro I, criou a Guarda Nacional (1831), visando à manutenção da ordem pública ameaçada por uma série de revoltas urbanas e provinciais, que contestavam a centralização do poder nas mãos de parte da elite política enriquecida pela expansão cafeeira na região sudeste do país. As reformas aprovadas no Parlamento pelos liberais moderados nesse período possuem a marca das pressões federalistas, selando um novo rearranjo político entre o poder central e as províncias.
A primeira parte do Código de Processo Criminal tratou da nova organização judiciária, que manteve nas províncias do Império as divisões em distritos de paz, termos e comarcas. No distrito, constituído por, no mínimo, 75 casas, haveria um juiz de paz eleito nas localidades, que contava, para auxiliá-lo, com um escrivão, inspetores de quarteirões e oficiais de justiça. O juiz de paz dividiria o distrito em quarteirões, contendo, no mínimo, 25 casas habitadas e escolheria também um inspetor entre as pessoas bem conceituadas e maiores de 21 anos para atuar nos limites dessa jurisdição, sendo nomeados pela câmara municipal. No termo haveria um juiz municipal, auxiliado pelos oficiais de justiça, um conselho de jurados, um promotor público e um escrivão das execuções. Em cada comarca haveria um juiz de direito, nomeado pelo imperador, podendo chegar até o número de três nas cidades de maior densidade demográfica. Foram extintos os cargos de ouvidores de comarca, os de juízes de fora e ordinários. O Código de Processo Criminal manteve a distinção, já presente no Código Criminal, no procedimento das ações penais que seriam promovidas pelo promotor público quando os crimes fossem públicos e por quaisquer cidadãos quando fossem particulares (BAJER, 2002, p. 25).
A Carta de 1824 já havia previsto o estabelecimento do cargo de juiz de paz por meio de sistema eletivo, cuja regulamentação viria posteriormente com o Código de Processo Criminal. A criação desse novo cargo judicial inseriu-se num momento em que o recente Estado nacional constituía seu aparato policial repressivo, tendo por finalidade a manutenção da ordem pública e a defesa da propriedade privada. Em 1827, a lei de 15 de outubro estabeleceu então que em cada freguesia houvesse um juiz de paz, cujas atribuições visavam principalmente à repressão aos comportamentos considerados indesejáveis, podendo obrigar a assinar termo de bem viver a vadios, mendigos, bêbados e prostitutas, além de destruir os quilombos, conciliar as partes em litígio, fazer interrogatórios, fazer auto do corpo de delito e prender os criminosos (BRASIL. Lei de 15 de outubro de 1827, art. 5º, parágrafos 1 ao 15).
A historiografia assinalou a importância que o juiz de paz adquiriu na década de 1830, principalmente na fase inicial dos processos nos distritos, em razão da extraordinária ampliação de suas atribuições policiais e judiciais. Cabia ao juiz julgar as contravenções às posturas das câmaras municipais e os crimes cujas penas eram leves conforme definidas pelo Código de Processo Criminal. Ao juiz de paz competia ainda vigiar os suspeitos, conceder passaportes, obrigar a assinar termo de bem viver aos vadios, mendigos, prostitutas, bêbados e todos os que perturbassem a ordem pública estabelecida (BRASIL. Código do Processo Criminal (1832), art. 12, parágrafos 1º ao 7º), (IGLÉSIAS, 1993, p. 149; SLEMIAN, 2008, p. 203; HOLLOWAY, 1997, p. 156).
Os códigos Criminal do Império e do Processo Criminal representaram juntos uma mudança em relação à codificação portuguesa absolutista, introduzindo uma série de procedimentos e instituições que tornaram a aplicação da justiça mais racional. No que se refere especificamente ao Código de 1832, seu texto proporcionou muitas garantias de defesa dos acusados com a adoção da ordem do habeas corpus, do direito concedido ao cidadão de promover a ação penal popular, mesmo não sendo vítima, quando os crimes fossem públicos, da instituição dos jurados e dos cargos eletivos de juiz de paz. Cabe notar que a justiça eletiva em nível local fortaleceu o município, mas, sendo o cargo alvo de disputas entre os grupos políticos locais que controlavam os processos eleitorais, sua independência ficou bastante comprometida (IGLÉSIAS, 1993, p. 151; SLEMIAN, 2008, p. 201; BAJER, 2002, p. 25).
O Código de Processo Criminal foi considerado um documento extremamente liberal, ampliando os direitos civis e políticos, com a valorização do cargo de juiz de paz e a participação dos cidadãos no Poder Judiciário por meio da instituição dos jurados. Estes últimos seriam escolhidos entre as pessoas bem conceituadas dos quarteirões, sendo seus nomes propostos pelos juízes de paz e nomeados pela câmara municipal. Só podiam ser jurados os cidadãos que podiam ser eleitos (Código de Processo Criminal (1832), arts. 23 e 24). Nos crimes mais graves, fora da jurisdição do juiz de paz, o julgamento final cabia ao conselho de jurados, presidido pelos juízes de direito. Posteriormente, a lei n. 261, de 3 de dezembro de 1841, que reformou o Código do Processo, alterou o critério de participação dos cidadãos exigindo que fossem alfabetizados. Apesar dessa restrição, na década de 1870, cerca de 80 mil pessoas haviam participado da instituição do júri (CARVALHO, 2001, p. 37).
A reforma do Código do Processo Criminal em 1841 ocorreu na conjuntura política denominada “reação conservadora”, tendo por finalidade rever a ordem jurídica extremamente liberal instituída no período da Regência.
Conforme o Código de Processo Criminal de 1832, o juiz de paz concentrava a autoridade de justiça e de polícia. No entanto, a partir da reforma de 1841, boa parte das suas atribuições foi transferida para os chefes de polícia e seus delegados, que adquiriram o direito de investigar, expedir mandatos de prisão, estipular fianças e até julgar casos menores como as infrações às posturas municipais.
Essa reforma redefiniu a hierarquia para o exercício da polícia administrativa e do Judiciário, concentrando o aparato repressivo nas mãos do ministro da Justiça, que se tornou o “centro de toda a administração policial do Império”. Nomeava funcionários policiais e todos os juízes, com exceção do juiz de paz. O ministro da Justiça contava, para a manutenção da segurança e tranquilidade públicas, bem como para o cumprimento das leis, com os presidentes e os chefes de polícia nas províncias, com o chefe de polícia no Município Neutro, com os juízes municipais nos termos, nos distritos com os juízes de paz e inspetores de quarteirões, e com as câmaras municipais nos municípios (BRASIL, 1842, arts. 1º ao 8º; CARVALHO, 2001, p. 96-7). Essa hierarquia centralizada, cujos administradores e encarregados atuavam na prevenção e punição dos crimes definidos pelo Código Criminal de 1830, na repressão aos escravos e ao contingente de homens pobres e livres, bem como no controle da população do Império, possibilitou a manutenção da ordem econômica, política e social então instituída pelo Estado imperial a partir da segunda metade do século XIX (MATTOS, 1990, p. 211 nota 49 e p. 281).
O Código de Processo Criminal foi alvo de uma nova reforma com a lei n. 2.033, de 24 de setembro de 1871, que foi regulamentada pelo decreto n. 4.824, de 22 de novembro de 1871, criando o inquérito policial.
Com a Proclamação da República, em 1889, os estados passaram a ter suas próprias leis processuais, à exceção de São Paulo, que continuou cumprindo o Código do Processo Penal do Império.
Gláucia Tomaz de Aquino Pessoa
29 jan. 2015
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Referência da imagem
Jean Baptiste Debret. Voyage pittoresque et historique au Brésil, ou Séjour d’un artiste français au Brésil, depuis 1816 jusqu’en 1831 inclusivement, epoques de l’avénement et de I’abdication de S.M.D. Pedro 1er. Paris: Firmind Didot Frères, 1834-1839. OR_1909_V2_PL_45